quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Não, a ciência não encontrou provas de precognição




 Premonição vira matéria de capa da IstoÉ --
por Carlos Orsi
Confesso que desde novembro do ano passado eu vinha esperando algum veículo da imprensa brasileira resolver divulgar, de forma sensacionalista, o artigo “Feeling the Future: Experimental Evidence for Anomalous Retroactive Influences on Cognition and Affect“, de autoria do pesquisador Daryl Bem e que relata nove experimentos que testaram a capacidade humana de prever o futuro — alguns dos quais, segundo o autor, obtiveram resultados positivos.
O IG já havia publicado uma extensa entrevista com Daryl Bem em janeiro, agora em março a revista Mente e Cérebro trouxe artigo a respeito e houve um artigo bem ponderado e nada sensacionalista de Hélio Schawrtsman, mas faltava a abordagem sensacionalista. Confirmando o dito de H.L. Mencken, segundo o qual pensar mal dos outros pode ser um pecado, mas raramente será um erro, eis que no domingo de carnaval encontro a IstoÉ nas bancas com a seguinte chamada de capa: “Premonição Existe“.
O tempora! O mores!
Não nego que o trabalho de Bem pudesse servir de pauta para uma boa reportagem — uma que mencionasse, por exemplo, as duras críticas feitas por James Alcock aos métodos estatísticos utilizados, as ressalvas de Richard Wiseman à metodologia ou o fato de a mesma revista que publicou o trabalho de Bem ter trazido uma crítica à forma como o cientista analisou seus dados.
Nada disso, no entanto, aparece na IstoÉ: ali, os resultados do psicólogo americano simplesmente são usados como “gancho” — isso é jargão jornalístico para “pretexto para estarmos tratando deste assunto exatamente agora” — para apresentar números sem significado algum e partir para “relatos humanos” de “casos reais” de precognição.
A matéria diz que “segundo o trabalho realizado em 2008 na Universidade de São Paulo, 71,5% relataram premonição através de sonhos”. Mesmo descontando a óbvia possibilidade de “retrofiting” — a pessoa ter um sonho qualquer e, depois de um evento ocorrer, vir a interpretá-lo arbitrariamente como premonitório — o dado só teria valor se fosse comparado ao número de sonhos que essas mesmas pessoas tiveram sobre o futuro e que não se concretizaram. Eu mesmo, uns dias antes de me casar, sonhei que entrava pelado na igreja. Essa premonição, felizmente, não se cumpriu.
Descrever em detalhe os nove estudos realizados por Daryl Bem seria uma tarefa enorme (quem quiser conhecer as minúcias pode se divertir com a análise caso-a-caso feita por James Alcock, linkada acima), mas apenas para dar uma noção do sabor geral, vou resumir um dos trabalhos.
Nele, voluntários viram uma série de palavras aparecerem numa tela de computador, e depois tiveram de digitar as que lembravam ter visto.
O computador em seguida selecionou parte das palavras apresentadas originalmente. Se os voluntários lembraram-se de mais palavras do que veio a constar na lista selecionada, considerou-se que foram capazes de prever a ação da máquina. Como Wiseman notou, esse estudo tem uma vulnerabilidade fundamental: a correção dos erros de digitação. Por exemplo, se o computador apresentou a palavra “CAR” e o voluntário digitou “CAT”, isso é um erro de digitação, ou o voluntário confundiu as palavras? (Bem respondeu a essa crítica dizendo que o fator de correção pode ser ignorado em tentativas de replicar o experimento.)
Outro experimento, que concluiu que as pessoas têm capacidade de prever quando e onde uma imagem erótica será exibida, tem um protocolo tão confuso que, a despeito do interesse intrínseco, não vou me dar ao trabalho de apresentar aqui.
Por fim, como é bem notado no Skeptic’s Dictionary, mesmo se os experimentos de Bem tivessem sido metodologicamente inatacáveis, estatisticamente perfeitos e executados sem falhas — a parapsicologia tem uma longa história de experiências que parecem perfeitas no papel, mas de execução relaxada — a única coisa que eles teriam demonstrado seria uma série de anomalias estatísticas: coisas que aconteceram com mais (ou menos) frequência do que se esperava.
Restaria ainda, portanto, a tarefa de determinar o que teria causado a anomalia. Para afirmar com confiança que ela foi provocada por precognição ou premonição, seria preciso replicar os resultados dos estudos diversas vezes, de forma independente e com controles estritos.
Tentativas de replicação estão em andamento, mas os resultados não estão parecendo nada promissores. Portanto, não vá contando com o jogo do bicho para pagar as contas. A ciência, a despeito do que andam dizendo por aí, não recomenda.
Jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. É autor, mais recentemente, de O livro dos milagres: A ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos.
Carlos Orsi

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.